Para anestesiar minhas noites durante os períodos de distanciamento físico (absolutamente vitais no combate a pandemia da Covid-19) eu gasto muito tempo rolando a tela da TV, incessantemente, no menu da NetFlix. Via de regra, afogo-me em tempestades de trivialidades, cravejadas de rostos jovens, muito pálidos, e corpos desumanamente esquálidos ou monstruosamente musculosos.
Esta semana, encontrei um título novo “Cidade Invisível”, produção nacional que faz referência ao folclore brasileiro. A trama promete misturar personagens do folclore no cotidiano de pessoas comuns, nos dias de hoje. Contudo, essas pessoas comuns, não são tão comuns assim, e é esse o fato que me interpela.
Sendo uma representante, finalmente, orgulhosa da cultura caipira e tendo crescido no Vale do Paraíba paulista, a proposta me pareceu tentadora. Intrigada, iniciei a série e em poucos minutos a predominância absoluta de personagens brancas me choca profundamente.
Sendo uma pesquisadora de dinâmicas étnico-raciais – racismo, preconceito, discriminação, branqueamento, branquitude – alguns gatilhos me despertam desconfiança imediata, como a monopolização do tempo de tela por pessoas brancas, ou seja, o lapso de tempo dedicado a determinada personagem em uma obra audiovisual.
Logo no início da série percebe-se que a personagem principal será um policial, homem-branco-jovem-atlético, olhos verdes, cabelos claros, másculo, armado e de corpo musculoso, daqueles que requerem horas de exercícios físicos diários e dieta específica – não ele não ficou assim por acaso. Atenho-me na descrição de seu físico e estética, porque a personagem é retratada em longos momentos expondo o torso nu e o abdômen trincado, no chuveiro, na rua, na fazenda ou numa casinha de sapé. Há também longos close-ups (recurso cinematográfico para enquadrar alguém em primeiro plano) em seu rosto, ou olhos verde-claro, como em rituais de reverência ou doutrinação àquela imagem. A mensagem não é subliminar, é aviltante, é concreta: admirem este rosto, este corpo, estes olhos – eis aqui o belo.
O galã-protagonista é tão dentro dos padrões de beleza e masculinidade promovidos pela elite branca que caso houvesse uma lista de requisitos (checklist para Netflix combina mais) ele atenderia a todos, o nariz dele é mais fino que o da Xuxa, tipo aquelas imagens de Jesus Cristo loiro de olhos azuis, sabe?
Por isso, já nos primeiros minutos eu desisti, recuperei meu espírito e fui assistir algum documentário, algo que não fosse tão descaradamente uma promoção da estética da branquitude. Coincidentemente, no dia seguinte, ume amigue me disse que o tema da série era interessante, por transportar o folclore brasileiro para os dias atuais. Apesar de considerar a escolha de elenco e protagonistas um desrespeito para com a população negra, para com o grande maioria da população que difere amplamente das estéticas promovidas, decidi dar uma segunda chance à trama, minha curiosidade caipira havia sido aguçada.
Assim, influenciada por minhe amigue, eu decidi ver mais um pouquinho da palhaçada (com todo respeito aos palhaços que são pessoas fantásticas). Enfim, não bastasse o galã, o resto de tempo de tela é monopolizado por mais personagens brancas, ou melhor, branquíssimas, a filha loira do protagonista, sua avó, sua esposa (pálida de olhos claros), sua colega de trabalho, o delegado e a Alessandra Negrini (no papel da Cuca, certamente após séculos de anemia profunda e sem andar pela floresta).
Empresto neste texto, com a devida referência, alguns termos utilizados pela pesquisadora e psicóloga Lia Schucman em sua tese de doutorado, “Entre o encardido, o branco e o branquíssimo”, na qual a pesquisadora retrata e denomina a gradação de tonalidades de pele e traços fisionômicos. O branquíssimo é aquele que tem a pele muito clara, os olhos e cabelos claros e os traços finos, associados à ascendência norte-europeia, um modelo idealizado de brancura. Ao passo que o branco e o encardido, são brancos que apresentam quaisquer traços que remetam à raça-etnia negra. O protagonista da série é um representante do grupo branquíssimo, essa escolha não é uma coincidência, ela reflete interesses da elite branca que ainda domina o país.
Detalhe, no decorrer da trama descobre-se que o galã é filho do boto-cor-de-rosa, papel interpretado por um homem pardo de olhos negros, representando uma pessoa indígena da região Norte. Pelas minhas contas de genes recessivos versus genes dominantes, ele não poderia ter um filho de olhos verde-claro.
Alguns dos personagens, obviamente, tiveram que ser interpretados por pessoas de outras cores de pele, o saci, o curupira, a Iara. Ou seja, a equipe que selecionou o elenco obrigatoriamente teve que se atentar a alguns requisitos mínimos de raça-etnia. Logo, não dá para dizer que raça-etnia são fenômenos invísiveis na “Cidade Invisível”, ou seja, essa invibilização das pessoas de pele escura não é obra do acaso.
Não obstante, referenciar os contos e histórias do folclore brasileiro tem seu valor, eu sou caipira, essas histórias fazem parte da minha trajetória, elas falam de pessoas indígenas e negras com poderes mágicos, falam de divindades de matriz Africana, de protagonistas com traços fisionômicos, cabelos e peles que reconheço na área rural onde vivo. Eu confesso ter assistido a série completa, porque, de alguma forma, pensar que essas entidades mágicas da minha infância habitam entre nós é algo intrigante, revigorante, um breve alento face a realidade social e política que combatemos desde 2019. Vislumbrar o extraordinário em um momento tão tenebroso pode trazer até algumas notas de esperança. Contudo, continuar celebrando e promovendo um padrão branco de beleza de forma tão descarada deveria ser considerado um crime. Discutir, problematizar e apontar tais incoerências étnico-raciais são também formas de combater privilégios simbólicos de uma minoria branca, uma estética que domina as produções nacionais desde o início da teledramaturgia brasileira.
Gabriel Siqueira, mestre em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, Integrante do grupo de pesquisa Bem Viver USP.